Os Reis Magos na quarentena
- Flávia Lima
- 31 de mar. de 2021
- 3 min de leitura
Atualizado: 29 de nov. de 2023

Antevéspera de Natal, em isolamento há muitos dias e sozinha numa cidade pra onde tinha me mudado há alguns meses. Campainha toca. Quem seria? Porteiro não interfonou! Batidinhas leves na porta. Abri. Três mãozinhas com flores estendidas: surpresaaaaaaaaaaa. Nicole, Bruno e Rafael. Os reis magos que vieram alegrar o meu Natal, como disse a Celinha, mais tarde. Trouxeram um buquê de rosinhas vermelhas, umas flores laranja e pedrinhas brancas, tudo do jardim do condomínio, eu saquei. – Oi, tia. Viemos te visitar. Sua perna melhorou?
(Feri seriamente o joelho um mês e meio antes e eles presenciaram tudo: chegando em casa, com uma sacola de compras, garrafas de cerveja dentro, torci o pé. As garrafas quebraram, caí com o joelho esquerdo em cima dos cacos, que entraram fundo, tudo muito feio. Celinha e Luiz, um casal de amigos, estavam em casa e desceram pra acudir. Os reis magos chegaram junto com eles: “pelo menos ela não morreu”, “quando eu crescer nunca vou beber cerveja”, disparavam frases assim, intercalando umas espiadas bem de perto, com certa distância pra cochichar entre si. Troquei um olhar divertido com a Celinha, que segurava forte a minha mão e estava quase desmaiando, como eu, e recobramos as forças. Luiz, que andava de lá pra cá, organizando meus documentos, trancando o apê, também achou graça. Quando a ambulância chegou, lembro das carinhas de alegre espanto vendo os paramédicos que estacaram o sangue, enfaixando rapidinho meu joelho sem remover os cacos, baixaram maca, ergueram maca, e eles: nooooooó, como bons mineirinhos.
Nas semanas seguintes, eu de muletas, regando as plantas na sacada, e eles brincando lá embaixo: – Ooooooi tia! E o seu joelho?)
Agora, os três ali, na minha sala: – Que flores lindas, nossa, muito obrigada! Bora achar uns vasinhos pra colocar? Saí mancando pela casa, procurando recipientes adequados para flores quase sem cabo. Eles, comigo. Abri um armário, nada. Bruno comentou: – Será que na geladeira não tem nenhum? – Vamos ver, abri a geladeira, achando graça. – Oba! Tem coca! Nicole deu bronca: – Ai que vergonha, Bruno, não pode fazer isso. A Nicole e o Rafael são irmãos. Ela tem 12 anos e o Rafa, 8. Moram no condomínio. O Bruno é amigo deles, tem 9 anos e fica na casa da tia no fim de semana. Perguntaram dos quadros, dos objetos, de que estado e país vieram, dos lugares onde morei. Tomamos um resto de coca sem açúcar, que era a coca que tinha. – Tia, a sua casa é a mais bonita do condomínio. – Ué, como vocês sabem? – A gente já foi em todas.
Voltaram várias vezes, sempre com flores, pedrinhas e a pureza das respostas das crianças: – Gente, essas flores são lindas, mas de onde vocês pegam, hein? Se entreolharam. – É segredo, a Nicole falou. – Isso... segredo. Melhor você não saber, disse o Bruno. Dei suco nas taças de vinho. – Nossa, e se quebrar?, a Nicole assustou. – Não tem problema, ela é rica, olha a coleção de taças!, falou o Rafael, apontando pra meia dúzia de taças, na cristaleira. – Rica mais ou menos, né, replicou o Bruno, mostrando a caixinha de som vagaba, em cima da mesa: – olha o radinho.
Passei um tempo sem vê-los. Neste março, estou com medo até de fazer compras online. Trabalhando 100% home office e em desespero pelos 80% que estão lá fora. Pois, justo neste mês, voltei a ter notícias deles:
– Campainha. – Batidas e conversas leves atrás da porta.
Estava lendo na rede, quase cochilando. Pensei um pouco nas possíveis consequências pra tanta gente e fiquei em silêncio. Eles se foram.
De noite, desci bem tarde pra colocar o lixo no lugar destinado. Do segundo andar até o térreo, vi pétalas das rosinhas.
Foi meu coração se despedaçando junto.
++++++
Maldito genocida, que despetala nossas melhores intenções nos degraus empoeirados de uma quarentena sem fim. E o medo, o medo disso nunca mais passar e as coisas ficarem pior? Nunca mais a gente rever a família e abraçar os amigos. Os cadáveres se acumularem e contaminar o lençol freático, os alimentos e o ar. E a violência urbana explodir e a gente sentir saudade de quando podia se esconder das batidinhas inocentes na porta numa tarde de domingo dourado.
Mas o que é que eu estou dizendo? Não chegaremos a isso, não é? Acalma seu coração, eu digo a mim mesma. Tenha fé, que a vida reserva muitas doçuras a nós todos. ❤
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